Foi publicado meu novo livro, em que procuro explicar por quais motivos Nise da Silveira (médica psiquiatra alagoana que dedicou toda a vida ao serviço público e às pessoas com doenças mentais) mereceu ser escolhida como Heroína da Pátria em 2022, a primeira servidora pública civil no Brasil a receber tal honraria. Para falar do livro, segue o belíssimo prefácio escrito pela professora paulista Irene Patrícia Nohara:

“É grande meu desafio de prefaciar a obra-prima Nise da Silveira e a Administração Pública, escrita com a máxima entrega e dedicação pelo admirável, incansável, surpreendente e inspirador Fábio Lins de Lessa Carvalho.

Em primeiro lugar, Fábio expressa que o motivo de Nise da Silveira ter sido vetada, pelo então-Presidente Bolsonaro, na homenagem de personalidades históricas do nosso País, ao ensejo de 2022 (bicentenário), foi um episódio catalisador do nascimento (não prematuro, diga-se, pois a presente obra está madura e rica) desta pérola da sofisticada e abrangente produção do nosso profícuo jurista de Alagoas.

Realmente, negar à Nise da Silveira, médica alagoana, que revolucionou a psiquiatria no Brasil e no mundo, o pódio merecido entre heróis e heroínas nacionais, nos estimula, no mínimo, a não fazer descaso com a grandeza desta brilhante personalidade histórica de nosso País.

Contudo, o veto não causa espanto… Partindo-se das ideias do ex-Presidente, admirador de outro “Brilhante”, o necrófilo torturador Ustra, que foi reputado por Bolsonaro “herói nacional”, este veto pode ser tido, em realidade, como uma ode à nossa autêntica personalidade: Nise da Silveira, pois ditadura, prisão e tortura são justamente aspectos combatidos ao longo da vida por Nise, que, a partir de sua marcante sensibilidade e compaixão, defendeu a liberdade, a dignidade e a terapêutica afetividade entre seres humanos (e, inclusive, entre pessoas e animais no geral).

De acordo com Erich Fromm, na Anatomia da Destrutividade Humana, pessoas intensamente necrófilas, como Ustra, são muito perigosas, pois são as que odeiam, as racistas, as que se mostram a favor da guerra, dos banhos de sangue e da destruição, podendo ser indivíduos que se juntam ao séquito de algum líder ditatorial, para se tornarem carrascos terroristas e torturadores (Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 489).

Já Nise da Silveira, por sua vez, era o exato oposto disso, pois ela era voltada à vida, ao afeto e à alteridade. Assim, deixar de cultuar Nise é como escolher, na paródia de Star Wars, “o lado negro da força”, uma escolha que, ao cabo, acaba sendo sempre muito dura para o ser humano, pois, como enfatiza Fromm, na Análise do Homem, “a pessoa destrutiva é infeliz mesmo que tenha conseguido alcançar os objetivos de sua destrutividade (…), reciprocamente, nenhuma pessoa sadia pode deixar de admirar manifestações de decência, amor e coragem, e ser afetada por elas, pois são estas forças sobre as quais repousa a própria vida” (Rio de Janeiro: Linoart, 1978, p. 193).  

Então, em vez de lustrar as botas e as máscaras dos “Darth Vaders” de nossa história, em seus períodos mais sombrios, talvez possamos aproveitar o ensejo para cultuar o brilho autêntico de uma rebelde, repleta de afeto e que, pela criatividade, experimentação e arte, contribuiu para que se virasse a página truculenta dos tratamentos psiquiátricos do Brasil e do mundo, regados a lobotomia, eletrochoques e demais métodos degradantes, legando imorredouras lições à humanidade.

Este é o intuito da presente obra, deliciosa de ler e recheada de curiosidades, que vai reconstruindo a trajetória de Nise da Silveira como biografia, com dados, relatos históricos e registros fotográficos, que só alguém com a envergadura e a cultura de Fábio Lins, alagoano igualmente talentoso e erudito, Procurador do Estado e professor da UFAL, faria nesta intensidade e com esse primoroso resultado.  

Inspirado na noção aristotélica de mimese, consciente de que a vida de Nise é rica e simultaneamente dramática, sendo digna de espelhamento, Fábio Lins reconta a desafiadora trajetória de Nise da Silveira a partir de doze capítulos, dos quais, ainda, extrai, ao final, doze lições edificantes.

Nesta obra, ele acrescenta a trajetória de uma extraordinária mulher ao seu trio de personalidades e a Administração Pública, consubstanciado nos antecessores: Pontes de Miranda e a Administração Pública, Graciliano Ramos e a Administração Pública (aliás, que encontrou, no cárcere, Nise da Silveira) e Raul Seixas e a Administração Pública (a qual também tive a grata alegria e a oportunidade de prefaciar).

Assim, a presente obra nos proporciona uma leitura edificante, onde se retrata Nise da Silveira com qualidades surpreendentes, que de fato tinha: mulher, nordestina, de Alagoas, e com uma visão de mundo includente, considerada precursora da reflexão antimanicomial e dos métodos de terapia ocupacional, com atividades artísticas, sendo elas instrumentos não verbais para a interação, o conhecimento do inconsciente e o reconhecimento entre seres humanos.

Nise lutou para, literalmente, substituir os medievais “picadores de gelo” das lobotomias praticadas no tratamento psiquiátrico pelos pincéis de tinta a óleo, enriquecidos com contatos com animais. Mas, sofreu preconceito, por ser mulher, ainda, muitos dos seus animais, vistos por ela como “co-terapeutas”, foram propositadamente envenenados. Houve um preço por empregar métodos alternativos de terapias e sobretudo por enfrentar um universo frio, exclusivamente masculino e absolutamente desumano.

Nise logo percebeu, desde o início de sua atividade de psiquiatra, que os médicos da psiquiatria convencional estavam absolutamente errados, sendo rígidos aplicadores de princípios equivocados acerca do ser humano.

Precursora brasileira das ideias depois defendidas por Foucault, Nise percebeu que o encarceramento seria, em realidade, um dos motores da loucura. Algo que revela, na atualidade, que a construção de manicômios é um passo dado para o isolamento de pessoas com transtornos mentais, mas que, efetivamente, não contribui ou se importa com o bem-estar destas pessoas. Neste sentido, nas palavras de Christian Dunker, Nise subverteu os “muros da loucura”, que, ademais, ela sentiu na carne quando esteve presa junto com Olga Benário e Graciliano Ramos (Boitempo, 2016).

As ideias defendidas e aplicadas, na prática, por Nise nos fazem refletir, com apoio em Foucault, sobre se não haveria, em múltiplas instituições, para além dos hospitais psiquiátricos, ou seja, também em postos de saúde, escolas, universidades, delegacias e presídios, resquícios das lógicas manicomiais desse período tão insensível da história da saúde mental. Nise destacou-se ao considerar a humanidade e a individualidade de todos os seus “clientes”, que se recusava a chamar de “pacientes”, por desejar que se tratassem de forma ativa, com atividades artísticas e interações afetivas, em vez dos métodos cruéis de objetificação e assujeitamento…

Da postura de Nise, fica a lição, que é universalizada pela contundente advertência de seu interlocutor, Carl Gustav Jung, in verbis: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. Outrossim, a médica alagoana se sentia “visceralmente amarrada ao serviço público”, onde se revelou a dimensão mais arquetípica e altruísta derivada da missão do “servidor”, isto é, daquele que, com entrega, serve ao interesse público primário da sociedade.

Por conseguinte, convidamos todas e todos à leitura da presente obra que coloca Nise da Silveira no pedestal que ela merece estar, isto é, no Olimpo dos heróis da nação brasileira, considerando herói aquele que, inspirado em Joseph Campbell, arquetipicamente, perpassa por 12 etapas: o mundo comum; o chamado à aventura; a recusa e hesitação; o encontro com o mentor; a travessia do limite; as provas, os aliados e os inimigos; o enfrentamento da “caverna”; a provação; a recompensa; o caminho de volta; o renascimento para uma nova vida e o reconhecimento no retorno.

Nise partiu do mundo edificante e acolhedor, com sua família em Maceió, recebeu um chamado à aventura de cursar medicina, na Bahia, tendo sido a única mulher de uma classe de centena de homens; recusa e hesita a seguir as especialidades da medicina; mas encontra diversos mentores, inclusive, posteriormente, Jung; ultrapassa os limites do sistema manicomial extremamente cruel e degradante da época; encontra provações, enfrenta preconceitos, tem refúgio nos aliados, como seu marido, vizinhos e poetas, a exemplo de Manuel Bandeira, que lhe dão amparo e alimento inclusive, no serviço público, e também enfrenta inimigos, a exemplo da colega de trabalho que lhe “denuncia” por encontrar entre seus livros um de Marx; enfrenta-se com a caverna horrenda da prisão em um período de ditadura, encontra provações, recebe recompensas, volta fortalecida, convicta, renasce das cinzas para uma nova vida, com mais empoderamento interno, para realizar suas terapêuticas e recebe, do mundo e do Brasil, o reconhecimento merecido!

Venha, então, se aventurar a ter a certeza, assim como nós temos, de que é uma grande heroína, com essa obra fantástica de Fábio Lins, Nise da Silveira e a Administração Pública, que certamente marcará tudo aquilo que foi pesquisado e levantado sobre essa brilhante personalidade do serviço público e da história brasileira”.

Irene Patrícia Nohara

Livre-Docente e Doutora em Direito do Estado (USP). Professora-Pesquisadora do Programa de Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

SINPOSE DO LIVRO

Em 2022, o Estado brasileiro reconheceu a médica psiquiatra Nise da Silveira como Heroína da Pátria. Pela primeira vez, uma servidora pública civil alcançou tal reverência. Mas que feitos extraordinários teria Nise da Silveira realizado para merecer tal consagração? As respostas estão neste livro especial, em que o professor Fábio Lins analisa a movimentada vida (1905-1999) e a rica trajetória no serviço público (1933-1975) da médica alagoana, que, além de ter revolucionado a psiquiatria brasileira e mundial, ofereceu diversas inspirações para aperfeiçoamento da Administração Pública e do Direito Administrativo. Com maestria, a partir de uma mirada transdisciplinar e dos exemplos de Nise da Silveira, o autor propõe reflexões sobre questões vitais para a gestão pública, como formação, superação, adaptação, vocação, perseguição, reflexão, indignação, inovação, qualificação, disseminação, dedicação e valorização dos servidores públicos.

(Na foto acima, o escritor Fábio Lins ao lado no mural de Nise da Silveira em Maceió)

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